José Alexande Garcia, o memorialista da boemia*
Everaldo Lopes
Cardoso ("Tribuna do Norte", 9/2/1997)
HOMENAGEM
O cronista
retratou o bairro da Ribeira entre os anos 40 e 60 com o livro
"Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia"
Para quem deseja escrever sobre a figura de José Alexandre Garcia é indispensável conhecer os dois lados do gordo Alex: o desportista /cronista esportivo e o boêmio inveterado. Essas três facetas ele soube desempenhar a um tempo só, até porque as três corriam mais ou menos paralelas.
Nas conversas da
Confeitaria Delícia, colhia muitos subsídios para a coluna diária que mantinha
na imprensa e a vida boêmia vinha depois dos afazeres no seu escritório de
despachante aduaneiro, na travessa Equador (hoje já com o nome de travessa José
Alexandre Garcia). Era ali mesmo que preparava o material de jornal, que
mandava pelo seu fiel escudeiro Cícero Graciano. Essa vidinha mansa Alex
conseguiu manter durante anos, com uma paciência que parecia até que o tempo
não ia passar nunca.
Nunca foi de
ostentações, tanto, que jamais cogitou tirar seu escritório da acanhada
travessa Equador, tão estreita, onde mal passava um automóvel, instalações
modestas, uma velha Remington que usava para escrever a coluna diária,
"Dizem por aí". No mais, limitava-se a assinar despachos que eram
datilografados por um funcionário.
Dali, final de
tarde, caminhava mais alguns metros e dava de cara com a Confeitaria Delícia,
que ficava em frente à velha Rodoviária da Ribeira, onde o papo estendia-se
noite a dentro.
Se à noite tinha
futebol ou futebol de salão, Alex bebia no máximo até três cervejas, porque a
atividade de cronista esportivo e cartola do esporte também o seduzia.
ETERNO AMANTE -
Zé Alexandre amava Natal e sua gente. Aqui cresceu e fez amigos, foi pai e avô.
Antes mesmo do movimento ambientalista de hoje, Alex era um defensor
intransigente do verde, crítico da extinção dos campos de várzea consumidos
pelo boom da construção civil.
"A velha
Ribeira de palafita, antigo alagadiço onde havia uma olaria, um plantio de
canas e bananeiras, abrigou, depois de transformada em caminho de canguleiros
que debandavam à cidade alta dos xarias, uma praça com uma pontezinha de
madeira."
"Natal era a
cidade modorrenta e provinciana, 40 mil habitantes espremidos entre Ribeira e
Cidade Alta, o resto era a pobreza franciscana das Rocas, os sítios do Tirol, a
mata de Petrópolis, o Alecrim ensaiando os primeiros passos".
“Assim como as
pessoas, as cidades têm o seu instante de afirmação, o seu dia de superação, o
empurrão providencial, o chamado passo à frente, decisivo e consagrador."
"Como quem
queria recuperar o tempo perdido, Natal nunca mais parou de crescer, de
expandir-se, de ampliar-se em novos horizontes, de abrir novas avenidas e das
avenidas multiplicar-se em novos bairros, povoando-se de belas
residências."
PERSONAGENS
FANTÁSTICOS QUE POVOARAM A RIBEIRA
Ninguém contou
estórias de boêmios tão bem como Alex no seu livro "Acontecências e tipos
da Confeitaria Delícia". Diz bem Celso da Silveira no prefácio: “Alexandre conta estórias daqueles
personagens fantásticos que povoaram nos fins de tarde esse cenário
descontraído, esse pedaço querido do território sentimental e estóico da velha
Ribeira." E conclui: "José Alexandre, com mais de 100 quilos de
fleugma, muitos dos quais a cerveja foi a grande culpada, resgata com seu livro
essa memória que iria perder-se com o tempo. Vamos todos, xarias e
canguleiros, seus amigos, depressa a esse apetitoso livro cheio de milonga do
cabuletê. Saravá e anauê." Celso da Silveira.
PERSONAGENS -
Ninguém escapa de Zé Alexandre, uns mais, outros menos, e os que conseguiram
"passar batidos" têm seus nomes citados, com a sugestão do autor de
que alguém dê andamento ao assunto, quem sabe em um outro livro. A essas
alturas, infelizmente, não mais escrito por ele.*
Uma das figuras
folclóricas foi Zé Areia. Num fim de tarde na confeitaria. Quando Café Filho
foi guindado à presidência da República, nos anos 50, ele viajou ao Rio para
tentar um emprego. Ao falar com o presidente, este, após duas horas de chá de
banco, ofereceu um emprego de seringueiro na Amazônia. Como não soubesse o que
era seringueiro, foi informado de que era emprego de tirar leite de pau.
Irritado, Zé Areia disse um desaforo ao oficial de gabinete e viajou de volta a
Natal. Aqui, começou a baixar o cacete no presidente, nunca o perdoando pela
indelicadeza com um humilde conterrâneo.
ALEX RETRATOU OS
TIPOS MAIS COMUNS QUE HABITARAM A CIDADE BAIXA
A figura
simpática e receptiva de José Alexandre Garcia habitava praticamente dois
mundos: o do esporte, devido a sua atividade como cronista conceituado, e quase
sempre dirigindo alguma federação ou mesmo a ACERN e o da boêmia, quando o
assunto e os personagens eram outros, completamente diferentes. O horário de
trabalho era dedicado ao escritório.
Apesar de formado
em advocacia, não exercia a profissão. Na Confeitaria Delícia, juntava várias
mesas e lá permaneciam por muitas horas amigos como Mozart Silva, Moisés
Villar, Ferreirinha, Newton Navarro, Etienne Reis, Carlos Lima, Eider Reis, Zé
de Brito, João Machado, Wilson Maranhão, Aldair Villar, entre tantos amigos que
possuía.
Entenda-se, ao
ser tratado por boêmio, que Alex não era um beberrão. Dosava sua cerveja, que
era muito mais o pretexto para intermináveis conversas de mesa de bar. Sabia
beber como ninguém. É o que se diz hoje de beber socialmente.
O outro Alex era
o da turma da imprensa e do esporte. Quando presidiu a Federação
Norte-riograndense de Futebol de Salão, ninguém foi mais responsável nem ousado
nas promoções grandiosas. Presidindo a ACERN, também foi arrojado. Gostava de
promover grandes temporadas com clubes de outros estados. Tinha uma liderança
incrível sem ser arrogante. Gostava de dirigir, de presidir, e, talvez, por
isso, jamais tenha desempenhado qualquer emprego público, onde, com certeza,
ficaria obrigado a cumprir ordens "lá de cima". Nascido de uma
família financeiramente bem situada, não ficou rico nem pobre com seu
escritório de despachante aduaneiro. Com a esposa Isabel, teve cinco filhos,
sendo dois homens e três mulheres, que lhe deram 11 netos. Alexandre partiu aos
71 anos.
SABER SER LEAL
AOS AMIGOS ERA UMA DAS CARACTERÍSTICAS DE JOSÉ ALEXANDRE
Uma das grandes
virtudes de Zé Alexandre foi a extrema lealdade para com os amigos. Era
impossível ouvir dele qualquer crítica a um companheiro. Numa mesa de bar,
podia até haver, partindo de terceiros, mas se não defendia de imediato o
colega atingido, não se esperasse qualquer endosso de sua parte. Preferia até
mudar de assunto. Alex também sabia ser grato aos amigos.
Uma das passagens
mais pitorescas vividas por Alex foi quando Firmino Moura, no governo do Mons.
Walfredo Gurgel, fez uma visita ao então secretário de Finanças, tributarista
José Daniel Diniz, e lançou o seguinte apelo:
- Daniel, vim
aqui pedir um favor: me demita do cargo de Fiscal de Rendas e ponha Zé
Alexandre no meu lugar...
Claro, Daniel
Diniz ficou surpreso com proposta tão estranha, até porque não seria fácil
tomar medida tão descabida. Mas houve um jeitinho bem brasileiro e Alex foi
nomeado. Não como Fiscal de Rendas, mas para o setor jurídico do IPE. O gesto
de grandeza de "Mino" nunca foi esquecido.
No seu livro
"Gol de Placa", Zé Alexandre cita essa passagem como forma de
gratidão a um grande amigo, já que, naquele tempo, a situação financeira dele
era das mais difíceis, com a agência de despachos marítimos rendendo pouco, as
despesas crescendo.
OS ESQUECIDOS -
Como último capítulo do seu livro retratando a Confeitaria Delícia, Alex faz um
reparo: é a possível estranheza do leitor quando constatar que figuras
tradicionais do bairro da Ribeira não aparecem no seu trabalho. Cita o mais
badalado do bairro que foi Álvaro Limarujo, Luiz Tavares, Pedro
"Garrote", os irmãos Chico e Antônio Lamas, Rômulo Leite, Berilo
Wanderley, Zé Resende, o velho Fulco, Manoel Maria Costa, Almeida, da Força e
Luz, e Lucas Siqueira.
*Publicado no
"Alma do Beco" e reproduzido pelo "PROTWITTER"
(sexta-feira, 8/4/2011)
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