sábado, 7 de setembro de 2024

Cronista esportivo escreve perfil do avô abolicionista

Odilon de Amorim Garcia assina ata republicana

ODILON DE AMORIM GARCIA

José Alexandre Garcia

Para falar no abolicionista Odilon de Amorim Garcia necessário se torna revirar velhas páginas da nossa História e situarmo-nos nas três últimas décadas do século passado, principalmente depois da Guerra do Paraguai.

Perdurava no Brasil triste e infamante nódoa: a escravidão.

As demais nações do continente já a haviam erradicado, mas as forças tradicionalistas do país, os senhores de engenhos, os proprietários de fazendas de café, os donos de extensas terras sequer queriam discutir o assunto, gananciosamente apegados à mão-de-obra barata que possuíam.

O escravo era uma peça, um bem, um objeto que possuíam com poderes de vida e morte, sem alma, sem direitos, sem família, sem liberdade religiosa ou sequer sexual.

As Leis do Sexagenário e do Ventre Livre foram paliativos que estudiosos de hoje consideram mais benéficas e favoráveis aos senhores que aos próprios beneficiários. A primeira desobrigava de sustentar pessoas de quase ou nenhuma serventia; e quanto à segunda, que poder-se-ia esperar de um ente nascido de um casal escravo de quem forçosamente iriam assimilar hábitos e costumes?

J. A. de Amorim Garcia: o jornalista

Na guerra contra o tirano Solano Lopes, formada a Tríplice Aliança, os oficiais brasileiros tomaram conhecimento de que na Argentina e no Uruguai não mais existiam elementos servis e um sentimento incontido de revolta e remorso os domina, sobretudo porque na hora cruciante das refregas, o escravo portava-se com uma bravura e um patriotismo digno dos maiores encômios.

Quando retornaram à pátria, Lançaram manifesto e recusaram-se a servir de capitães do mato nas empreitadas de recapturar escravos fugidos.

Este foi o primeiro grande golpe desferido contra o status-quo vigente.

Ao mesmo tempo, nasce e cresce avassaladoramente a campanha abolicionista da qual a grande voz foi Castro Alves, com seus versos fulgurantes, galvanizando toda a nação com a descrição da subvida que levavam nas senzalas os desditosos filhos do Continente Negro.

Por todo o Brasil, surgiram sociedades libertadoras, primeiro procurando alforriar e depois pregando abertamente o resgate do preto de qualquer maneira, através de audaciosos movimentos libertários, onde, dar-lhe fuga era o mais usual.

O Ceará foi a primeira província a abolir a escravidão. No Rio Grande do Norte, a honra coube à cidade de Mossoró e o 30 de setembro de 1883 é uma página épica na sua História.

Várias cidades do Estado seguram-lhes o exemplo e as sociedades secretas proliferaram, principalmente sob a égide da Maçonaria.

Em Natal, a Sociedade Liberadora é fundada em 1º de Janeiro de 1887 e um de seus fundadores é o coronel da Guarda Nacional Odilon de Amorim Garcia, que tornar-se-ia associado de grande destaque, principalmente pela sua condição de elemento de ligação que facilitava o meio de transporte para os fugitivos.

Segundo o professor Tarcísio Medeiros em seus “Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, os filiados da Sociedade Liberadora “rondavam as casas, pulavam muros, conversavam e convenciam os negros e os ajudavam a arrumar os molambos, as trouxas, redes, moleques, guiando a caravana até um ponto escondido onde uma barcaça os esperava nas margens do Potengi para transportá-los para o Ceará.”

Odilon Garcia era a peça decisiva na engrenagem da operação. Agente da Companhia Brasileira de Navegação a Vapor em nossa cidade, com parentes no Ceará e amigo do grande líder abolicionista em Fortaleza, João Cordeiro, a quem telegrafava horas depois da barcaça transpor a barra: Seguiram Jequiriti, tantos abacaxis. Jequiriti era o nome da barcaça e os abacaxis eram os escravos.

Contam até um fato pitoresco a propósito duma destas empreitadas.

Chegando a uma fazendola, entabulados os contatos, um cativo recusa-se a fugir. Era velho, doente, sentia-se bem onde estava, gostava do dono. O coronel Odilon, após esgotar os argumentos persuasórios, muniu-se de argumentação bem mais virulenta e convincente:

- Ou você foge ou mando lhe dar uma surra de cipó!

Lógico que o escravo logo convenceu-se. Anos depois, quando remanescentes da Sociedade reuniram-se no Grupo da Botica, Odilon afirmava que o autor deste conselho não teria sido ele e sim outro grande abolicionista: João Avelino. Este, por sua vez, o negava e atribuía o conselho a Odilon.

A bem da verdade, o personagem deste episódio nunca foi devidamente esclarecido, pois, reciprocamente, sorrindo, ambos se acusavam e se eximiam.

Odilon, o maçom

Outro fato que revela o caráter e a personalidade deste cearense nascido em Fortaleza em 1º de janeiro de 1846 foi o desenrolar da Questão Religiosa.

Recusando-se a abjurar a Maçonaria, o famoso Vigário Bartolomeu fora suspenso da Ordem por Dom Vidal, bispo de Olinda e Recife.

Ainda por cavilosa insinuação emanada do Palácio dos Manguinhos, católicos radicais passam a exercer mesquinha perseguição ao padre que fora durante trinta anos o vigário colado da Matriz, pastor de almas, seu representante na Assembleia e vice-presidente da Província: queriam a todo custo expulsá-lo de Natal.

Surge, então, um contra movimento. Num abaixo-assinado dirigido ao presidente da Província, os notáveis, os homens de bem da cidade, solicitam a sua mediação e medidas de proteção para que o vigário aqui continuasse trabalhando e vivendo sem ser molestado.

Foi grande a minha emoção quando, nos arquivos da Loja 21 de Março, deparei-me com tal documento e entre os signatários, a maçônica assinatura do meu avô.

Odilon, o católico

Profundamente católico, dele partiu a iniciativa para a restauração da Igreja do Bom Jesus, na Ribeira, dando-lhe, em linhas gerais, a estrutura física que hoje possui.

Devoto do Senhor Bom Jesus dos Passos, era o responsável pelo 1º Passo na bicentenária Procissão do Encontro, ali, na Doutor Barata, onde viveu e trabalhou, pois a Agência do Loide era um anexo de sua casa.

Aliás, a família Amorim Garcia foi responsável durante mais de noventa anos por este Passo, primeiro na Doutor Barata, enquanto pode ali residir sua viúva, Maria Amália de Amorim Garcia, a Dona Maroquinha, que foi a última moradora a sair de lá, quando a artéria se tornou centro comercial, e, depois, na Duque de Caxias, residência de Odilon, seu filho.

Odilon, professor e agente

Odilon de Amorim Garcia prestou concurso para a cátedra de Inglês no Atheneu Norte-rio-grandense em 22 de agosto de 1877.

Vivera na Inglaterra oito anos. Minha avó repetia sempre a história desse período. Ficando órfão aos treze anos, seus austeros tios o matricularam num colégio inglês e o embarcaram num cargueiro sem que ele soubesse uma palavra do idioma de Shakespeare.

Retornando a Fortaleza, logo aqui aportou no navio São Jacinto, portador da nomeação de agente da Cia de Navegação que depois transformar-se-ia no Loide Brasileiro, servindo neste posto mais de meio século. Aqui, constituiu família e viveu até o fim de seus dias.

Como professor, profetizava para seus alunos: aprendam Inglês, porque o Inglês será no futuro o idioma internacional por excelência, falada nos quatro cantos do mundo. E isto numa época de absoluto domínio do Francês e de Paris como capital do mundo civilizado.

E entusiasmava-se se os alunos pronunciavam pelo menos uma frase correta em Inglês, e distribuía notas máximas a mãos cheias.

Odilon, o agente consular

Segundo Cascudo, ele foi encarregado consular ou vice-cônsul durante cinco décadas. Quando de sua substituição, o governo de Sua Majestade o condecorou, enviando valioso brinde em agradecimento pelos relevantes serviços prestados.

Assim, Odilon foi descrito por Cascudo:

“Conheci o velho Odilon na rua Doutor Barata, andando devagar, falando brando, sorrindo sem pecado, inteligente, educado, fino de maneiras, viajado, sereno, irônico, as frases limpas, o vocabulário polido e equilibrado. Sempre evocava fatos do movimento abolicionista do qual foi um dos grandes artífices.

Realmente, o movimento o marcou. E recordava com orgulho que no dia 13 de Maio de 1888 somente restavam cinco escravos em Natal, tanto eles tinham agido nas caladas das noites e quanto aqui aportava a barcaça Jequiriti.

Faleceu no dia 22 de abril de 1922, deixando viúva Dona Maria Amália, que era sua segunda esposa e sua sobrinha, e os filhos que atingiram maioridade: Odilon, Luiz Odilon, Pedro Odilon, Antônio Odilon, a freira Maria Luiza e José Alexandre, meu pai.

Voz do Neto

Permitam-me agora que fale a voz do sangue, do descendente, do neto, do Amorim Garcia, parodiando Manuel Bandeira.

Quando o Coronel Odilon aportou no céu com suas maneiras polidas e a boca entreaberta num suave sorriso, fitou São Pedro e educadamente pediu:

- Licença, meu Santo?

E São Pedro, abrindo de par a par as portas da Mansão Celestial, respondeu com alegria:

- Entre, Odilon, você não precisa pedir licença. Você foi homem bom, honesto, livre e de bons costumes, fiel aos seus ideais, paladino do bem.

 

NOTA DO REDATOR: crônica e imagens do acervo particular cedidas gentilmente pelo bisneto Eduardo Alexandre de Amorim Garcia (Dunga). O autor, José Alexandre Garcia, foi editor esportivo do “Diário de Natal” nos anos 50/60 e presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Rio Grande do Norte.

 

 

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