Odilon de Amorim Garcia assina ata republicana |
ODILON DE AMORIM GARCIA
José Alexandre Garcia
Para falar no abolicionista Odilon de Amorim Garcia
necessário se torna revirar velhas páginas da nossa História e situarmo-nos nas
três últimas décadas do século passado, principalmente depois da Guerra do
Paraguai.
Perdurava no Brasil triste e infamante nódoa: a
escravidão.
As demais nações do continente já a haviam
erradicado, mas as forças tradicionalistas do país, os senhores de engenhos, os
proprietários de fazendas de café, os donos de extensas terras sequer queriam
discutir o assunto, gananciosamente apegados à mão-de-obra barata que possuíam.
O escravo era uma peça, um bem, um objeto que
possuíam com poderes de vida e morte, sem alma, sem direitos, sem família, sem
liberdade religiosa ou sequer sexual.
As Leis do Sexagenário e do Ventre Livre foram
paliativos que estudiosos de hoje consideram mais benéficas e favoráveis aos
senhores que aos próprios beneficiários. A primeira desobrigava de sustentar
pessoas de quase ou nenhuma serventia; e quanto à segunda, que poder-se-ia
esperar de um ente nascido de um casal escravo de quem forçosamente iriam
assimilar hábitos e costumes?
J. A. de Amorim Garcia: o jornalista |
Na guerra contra o tirano Solano Lopes, formada a Tríplice Aliança, os oficiais brasileiros tomaram conhecimento de que na Argentina e no Uruguai não mais existiam elementos servis e um sentimento incontido de revolta e remorso os domina, sobretudo porque na hora cruciante das refregas, o escravo portava-se com uma bravura e um patriotismo digno dos maiores encômios.
Quando retornaram à pátria, Lançaram manifesto e
recusaram-se a servir de capitães do mato nas empreitadas de recapturar
escravos fugidos.
Este foi o primeiro grande golpe desferido contra o
status-quo vigente.
Ao mesmo tempo, nasce e cresce avassaladoramente a
campanha abolicionista da qual a grande voz foi Castro Alves, com seus versos
fulgurantes, galvanizando toda a nação com a descrição da subvida que levavam
nas senzalas os desditosos filhos do Continente Negro.
Por todo o Brasil, surgiram sociedades
libertadoras, primeiro procurando alforriar e depois pregando abertamente o
resgate do preto de qualquer maneira, através de audaciosos movimentos
libertários, onde, dar-lhe fuga era o mais usual.
O Ceará foi a primeira província a abolir a
escravidão. No Rio Grande do Norte, a honra coube à cidade de Mossoró e o 30 de
setembro de 1883 é uma página épica na sua História.
Várias cidades do Estado seguram-lhes o exemplo e
as sociedades secretas proliferaram, principalmente sob a égide da Maçonaria.
Em Natal, a Sociedade Liberadora é fundada em 1º de
Janeiro de 1887 e um de seus fundadores é o coronel da Guarda Nacional Odilon
de Amorim Garcia, que tornar-se-ia associado de grande destaque, principalmente
pela sua condição de elemento de ligação que facilitava o meio de transporte
para os fugitivos.
Segundo o professor Tarcísio Medeiros em seus
“Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, os
filiados da Sociedade Liberadora “rondavam as casas, pulavam muros, conversavam
e convenciam os negros e os ajudavam a arrumar os molambos, as trouxas, redes,
moleques, guiando a caravana até um ponto escondido onde uma barcaça os
esperava nas margens do Potengi para transportá-los para o Ceará.”
Odilon Garcia era a peça decisiva na engrenagem da
operação. Agente da Companhia Brasileira de Navegação a Vapor em nossa cidade,
com parentes no Ceará e amigo do grande líder abolicionista em Fortaleza, João
Cordeiro, a quem telegrafava horas depois da barcaça transpor a barra: Seguiram
Jequiriti, tantos abacaxis. Jequiriti era o nome da barcaça e os abacaxis eram
os escravos.
Contam até um fato pitoresco a propósito duma
destas empreitadas.
Chegando a uma fazendola, entabulados os contatos,
um cativo recusa-se a fugir. Era velho, doente, sentia-se bem onde estava,
gostava do dono. O coronel Odilon, após esgotar os argumentos persuasórios,
muniu-se de argumentação bem mais virulenta e convincente:
- Ou você foge ou mando lhe dar uma surra de cipó!
Lógico que o escravo logo convenceu-se. Anos
depois, quando remanescentes da Sociedade reuniram-se no Grupo da Botica,
Odilon afirmava que o autor deste conselho não teria sido ele e sim outro
grande abolicionista: João Avelino. Este, por sua vez, o negava e atribuía o
conselho a Odilon.
A bem da verdade, o personagem deste episódio nunca
foi devidamente esclarecido, pois, reciprocamente, sorrindo, ambos se acusavam
e se eximiam.
Odilon, o maçom
Outro fato que revela o caráter e a personalidade
deste cearense nascido em Fortaleza em 1º de janeiro de 1846 foi o desenrolar
da Questão Religiosa.
Recusando-se a abjurar a Maçonaria, o famoso
Vigário Bartolomeu fora suspenso da Ordem por Dom Vidal, bispo de Olinda e
Recife.
Ainda por cavilosa insinuação emanada do Palácio
dos Manguinhos, católicos radicais passam a exercer mesquinha perseguição ao
padre que fora durante trinta anos o vigário colado da Matriz, pastor de almas,
seu representante na Assembleia e vice-presidente da Província: queriam a todo
custo expulsá-lo de Natal.
Surge, então, um contra movimento. Num
abaixo-assinado dirigido ao presidente da Província, os notáveis, os homens de
bem da cidade, solicitam a sua mediação e medidas de proteção para que o
vigário aqui continuasse trabalhando e vivendo sem ser molestado.
Foi grande a minha emoção quando, nos arquivos da
Loja 21 de Março, deparei-me com tal documento e entre os signatários, a
maçônica assinatura do meu avô.
Odilon, o católico
Profundamente católico, dele partiu a iniciativa
para a restauração da Igreja do Bom Jesus, na Ribeira, dando-lhe, em linhas
gerais, a estrutura física que hoje possui.
Devoto do Senhor Bom Jesus dos Passos, era o
responsável pelo 1º Passo na bicentenária Procissão do Encontro, ali, na Doutor
Barata, onde viveu e trabalhou, pois a Agência do Loide era um anexo de sua
casa.
Aliás, a família Amorim Garcia foi responsável
durante mais de noventa anos por este Passo, primeiro na Doutor Barata,
enquanto pode ali residir sua viúva, Maria Amália de Amorim Garcia, a Dona
Maroquinha, que foi a última moradora a sair de lá, quando a artéria se tornou
centro comercial, e, depois, na Duque de Caxias, residência de Odilon, seu
filho.
Odilon, professor e agente
Odilon de Amorim Garcia prestou concurso para a
cátedra de Inglês no Atheneu Norte-rio-grandense em 22 de agosto de 1877.
Vivera na Inglaterra oito anos. Minha avó repetia
sempre a história desse período. Ficando órfão aos treze anos, seus austeros
tios o matricularam num colégio inglês e o embarcaram num cargueiro sem que ele
soubesse uma palavra do idioma de Shakespeare.
Retornando a Fortaleza, logo aqui aportou no navio
São Jacinto, portador da nomeação de agente da Cia de Navegação que depois
transformar-se-ia no Loide Brasileiro, servindo neste posto mais de meio século.
Aqui, constituiu família e viveu até o fim de seus dias.
Como professor, profetizava para seus alunos:
aprendam Inglês, porque o Inglês será no futuro o idioma internacional por
excelência, falada nos quatro cantos do mundo. E isto numa época de absoluto
domínio do Francês e de Paris como capital do mundo civilizado.
E entusiasmava-se se os alunos pronunciavam pelo
menos uma frase correta em Inglês, e distribuía notas máximas a mãos cheias.
Odilon, o agente consular
Segundo Cascudo, ele foi encarregado consular ou vice-cônsul
durante cinco décadas. Quando de sua substituição, o governo de Sua Majestade o
condecorou, enviando valioso brinde em agradecimento pelos relevantes serviços
prestados.
Assim, Odilon foi descrito por Cascudo:
“Conheci o velho Odilon na rua Doutor Barata,
andando devagar, falando brando, sorrindo sem pecado, inteligente, educado,
fino de maneiras, viajado, sereno, irônico, as frases limpas, o vocabulário
polido e equilibrado. Sempre evocava fatos do movimento abolicionista do qual
foi um dos grandes artífices.
Realmente, o movimento o marcou. E recordava com
orgulho que no dia 13 de Maio de 1888 somente restavam cinco escravos em Natal,
tanto eles tinham agido nas caladas das noites e quanto aqui aportava a barcaça
Jequiriti.
Faleceu no dia 22 de abril de 1922, deixando viúva
Dona Maria Amália, que era sua segunda esposa e sua sobrinha, e os filhos que
atingiram maioridade: Odilon, Luiz Odilon, Pedro Odilon, Antônio Odilon, a
freira Maria Luiza e José Alexandre, meu pai.
Voz do Neto
Permitam-me agora que fale a voz do sangue, do
descendente, do neto, do Amorim Garcia, parodiando Manuel Bandeira.
Quando o Coronel Odilon aportou no céu com suas
maneiras polidas e a boca entreaberta num suave sorriso, fitou São Pedro e
educadamente pediu:
- Licença, meu Santo?
E São Pedro, abrindo de par a par as portas da
Mansão Celestial, respondeu com alegria:
- Entre, Odilon, você não precisa pedir licença.
Você foi homem bom, honesto, livre e de bons costumes, fiel aos seus ideais,
paladino do bem.
NOTA DO REDATOR: crônica e
imagens do acervo particular cedidas gentilmente pelo bisneto Eduardo Alexandre de
Amorim Garcia (Dunga). O autor, José Alexandre Garcia, foi editor esportivo do
“Diário de Natal” nos anos 50/60 e presidente da Associação dos Cronistas
Esportivos do Rio Grande do Norte.
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