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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Antigo cronista esportivo retrata "match" internacional

J. A. de Amorim Garcia

O jogo com os oficiais ingleses

José Alexandre Garcia

As primeiras impressões são as que perduram indeléveis em qualquer ramo de atividade.  No futebol, também.

Aquele match – como chamava “A República” de 1931 – entre um time da terra e os oficiais da belonave inglesa, ancorada em nosso porto, era a sensação daquela temporada.

Natal, em peso, se deslocou para o campo da ARA, ali, na Hermes da Fonseca.  Nos dias anteriores, a programação oficial da visita do vaso de guerra fora cumprida à risca: visita protocolar ao Palácio, baile no Aero Clube, recepção a bordo, puxada a uísque escocês.

A porfia de esporte bretão – como elegantemente a ele se referira o jornal de Pedro Velho – era o item final e o mais aguardado.

Recorte: "Jornal dos Sports" (RJ)
26 de setembro de 1931

PRESENÇA DA FAMÍLIA EM PESO

Lembro-me como se fora hoje: papai encostou o Ford por trás da baliza de entrada, a capota arriada para a família assistir bem assentada.  Todo mundo em grande gala.  Papai de linho HJ, chapéu de palhinha na cabeça, a resguardar-se do sol e esconder a careca.  Mamãe, com o melhor de seus vestidos.  Minha irmã Odila estava exuberante.  Era cópia fiel de Pola Negri ou Theda Bara, as musas do cinema de então; vestido, cabelo, pintura, modos de sentar e assestar olhares em derredor, em estudada pose.  E eu, roupa de marinheiro azul, quente como os seiscentos diabos.  Casimira da boa.  Odilon cedo desgarrara-se do grupo, em rota batida em direção a uma turca chamada Anita, por quem estava arriado dos quatro pneus.

OS SATÉLITES

Em distância convenientemente respeitosa, Edgar, o namorado de Odila.  Papai fazia que não via.  Mamãe, idem; e eu era francamente pró Edgar, feito lançadeira entre eles, trazendo e levando bilhetinhos: “Vou hoje à soirée do Royal Cinema.  Você vai?”, “Amanhã, vou passar a tarde com vovó Maroquinhas” (uma doce figura de gente, adorando alcovitar namoros das netas, ansiosa para ver Alba, Odila e Zuleide casadas).

A verdade precisa ser dita.  Logo mais adiante, como dois excelentes verdadeiros satélites girando em torno do astro-rei, poderiam ser detectados os também pretendentes, o magro e alto Teodomiro, e; o gordo e petulante Eutiquiano.  Na minha percepção de cinco anos, dois chatos de galocha, sem um gesto de compreensão ou palavra amiga para o “enfant gaté” da Miss Natal, irmãozinho caçula, espécie de experimento ou cobaia para seus futuros encargos maternais.

Edgar era o protótipo do boa praça, sempre provido com confeitos Baratinha ou torrones de chocolate para ganhar a amizade do petiz.  E, pasmem, até graça achava em qualquer besteira que eu dizia.

O JOGO

Mas vamos ao match.  Certamente que os ingleses eram mais técnicos, com o melhor conjunto, jogo vistoso e envolvente.  Então, quando atacavam, era um deus nos acuda!

- Três deles pertencem à Seleção da Grã-Bretanha – exageravam os basbaques assistentes provincianos.

- E, sobretudo, que finesse em campo!  Corteses e com pedidos largos de desculpas quando o tete-a-tete tornava-se inevitável.

O PÊNALTI

Então, no lance da cobrança do pênalti, foi atingido o máximo de cavalheirismo.  Que requinte, que fairplay!  E notem que o pênalti aconteceu quando os locais, num bambo, tinham aberto a contagem.

Aí, destacou-se a figura do center-half, um grão-senhor a cantar o jogo para os lados e para a frente, asas abertas como um pássaro.  Foi o autor do gol local.  Com tiro fraco e despretensioso.  Acontece que a número cinco resvalara numa depressão do terreno e aninhara-se no fundo das redes, com o guarda-valas impotente para aquela verdadeira traição, fora das regras vigentes.

CONJURAR O PÊNALTI

Quase ao terminar o primeiro tempo, um inglês foi derrubado de maneira tão bárbara dentro da grande área, que o “patriota” de camisa preta não teve jeito senão marcar a penalidade máxima.  Mas, quando o center-forward, gigantão louro, 1,90m, encaminhou-se para a bola, todo o time inglês fazia sinais para que ele chutasse pra fora.

Tradução: os ingleses achavam uma indignidade marcar gol de pênalti.  Embora o 1 X 1 poderia, inclusive, influir de maneira decisiva no resultado final.

No seio da torcida presente ao campo da ARA, aquilo era o suprassumo do fino, do cavalheirismo personificado, um gesto altamente civilizado!

O TROCO

Quando faltavam dez minutos pra terminar o jogo, com o placar ainda estabelecendo 1 X 0, foi a vez do América – agora me lembro que era o América que enfrentava os ingleses –por intermédio de Neném, paulista que aqui aportou e se tornou o maior craque que já pisara em gramados papa-jerimuns, foi o encarregado da cobrança.  A penalidade não fora patriotada.  Realmente, o galego da camisa 3 desviara a bola com a mão.

Para os natalenses, os 2 X 0 era a sopa no mel.  Faltando tão pouco tempo para o encerramento, era a vitória consolidada.  Mas estavam impregnados pelos salamaleques dos visitantes.  Urgia retribuir, mostrando educação.  Afinal, não eram tão bárbaros!

- Pra fora!  Pra fora! – gritavam em coro.

Neném, como um príncipe distribuindo benesses, chutou com elegância a pelota para léguas distantes da área, lá pra perto da linha de corner, como a dizer:

- Vejam, seus galegos: nós também somos romanticamente civilizados.

LEMBRANÇA PRIMEIRA

Essa foi a lembrança primeira que tive de espetáculo futebolístico.  Não sei se estes lances realmente existiram ou se foram frutos de minha imaginação de menino.  Nunca tirei a limpo esta história dos românticos pênaltis, para não me decepcionar.

Mas, aqui entre nós, nunca mais vi lances como estes!

 

A SÚMULA DO JOGO

América 4 – 2 H. M. S. Dauntless

Data: domingo, 30/8

Competição: amistoso

Estádio: Juvenal Lamartine

Árbitro: Aníbal Azevedo

Gols: Cabo João, Hemetério, Blake (contra), Glicério e Giblin (2)

América: Milton, Raimundo, Everardo, Teixeira, Neném, Praça, Baltasar, Cabo João, Hemetério, Glicério e Pinheirão. Treinador: Everardo Barros

Dauntless: Black, Kelloway, Barrigton, Pay, Castland, Barry, Hilley, Giblin, Robson, Lunchers e Hitleir

 

NOTA DO REDATOR: crônica do livro "Gol de Placa" (Editora Clima - 2002), publicada em rede social pelo bisneto, o produtor cultural Eduardo Alexandre de Amorim Garcia (Dunga), cedida gentilmente para o blog. O autor, José Alexandre Garcia, foi editor esportivo do “Diário de Natal” nos anos 50/60 e presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Rio Grande do Norte.

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