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J. A. de Amorim Garcia |
O jogo com os oficiais ingleses
José Alexandre
Garcia
As primeiras
impressões são as que perduram indeléveis em qualquer ramo de atividade. No futebol, também.
Aquele match –
como chamava “A República” de 1931 – entre um time da terra e os oficiais da
belonave inglesa, ancorada em nosso porto, era a sensação daquela temporada.
Natal, em peso,
se deslocou para o campo da ARA, ali, na Hermes da Fonseca. Nos dias anteriores, a programação oficial da
visita do vaso de guerra fora cumprida à risca: visita protocolar ao Palácio,
baile no Aero Clube, recepção a bordo, puxada a uísque escocês.
A porfia de
esporte bretão – como elegantemente a ele se referira o jornal de Pedro Velho –
era o item final e o mais aguardado.
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Recorte: "Jornal dos Sports" (RJ) 26 de setembro de 1931 |
PRESENÇA DA FAMÍLIA EM PESO
Lembro-me como
se fora hoje: papai encostou o Ford por trás da baliza de entrada, a capota
arriada para a família assistir bem assentada.
Todo mundo em grande gala. Papai
de linho HJ, chapéu de palhinha na cabeça, a resguardar-se do sol e esconder a
careca. Mamãe, com o melhor de seus
vestidos. Minha irmã Odila estava
exuberante. Era cópia fiel de Pola Negri
ou Theda Bara, as musas do cinema de então; vestido, cabelo, pintura, modos de
sentar e assestar olhares em derredor, em estudada pose. E eu, roupa de marinheiro azul, quente como
os seiscentos diabos. Casimira da
boa. Odilon cedo desgarrara-se do grupo,
em rota batida em direção a uma turca chamada Anita, por quem estava arriado dos
quatro pneus.
OS SATÉLITES
Em distância
convenientemente respeitosa, Edgar, o namorado de Odila. Papai fazia que não via. Mamãe, idem; e eu era francamente pró Edgar,
feito lançadeira entre eles, trazendo e levando bilhetinhos: “Vou hoje à soirée
do Royal Cinema. Você vai?”, “Amanhã,
vou passar a tarde com vovó Maroquinhas” (uma doce figura de gente, adorando
alcovitar namoros das netas, ansiosa para ver Alba, Odila e Zuleide casadas).
A verdade
precisa ser dita. Logo mais adiante,
como dois excelentes verdadeiros satélites girando em torno do astro-rei,
poderiam ser detectados os também pretendentes, o magro e alto Teodomiro, e; o
gordo e petulante Eutiquiano. Na minha
percepção de cinco anos, dois chatos de galocha, sem um gesto de compreensão ou
palavra amiga para o “enfant gaté” da Miss Natal, irmãozinho caçula, espécie de
experimento ou cobaia para seus futuros encargos maternais.
Edgar era o
protótipo do boa praça, sempre provido com confeitos Baratinha ou torrones de
chocolate para ganhar a amizade do petiz.
E, pasmem, até graça achava em qualquer besteira que eu dizia.
O JOGO
Mas vamos ao
match. Certamente que os ingleses eram
mais técnicos, com o melhor conjunto, jogo vistoso e envolvente. Então, quando atacavam, era um deus nos
acuda!
- Três deles
pertencem à Seleção da Grã-Bretanha – exageravam os basbaques assistentes
provincianos.
- E, sobretudo,
que finesse em campo! Corteses e com
pedidos largos de desculpas quando o tete-a-tete tornava-se inevitável.
O PÊNALTI
Então, no lance
da cobrança do pênalti, foi atingido o máximo de cavalheirismo. Que requinte, que fairplay! E notem que o pênalti aconteceu quando os
locais, num bambo, tinham aberto a contagem.
Aí, destacou-se
a figura do center-half, um grão-senhor a cantar o jogo para os lados e para a
frente, asas abertas como um pássaro.
Foi o autor do gol local. Com
tiro fraco e despretensioso. Acontece
que a número cinco resvalara numa depressão do terreno e aninhara-se no fundo
das redes, com o guarda-valas impotente para aquela verdadeira traição, fora
das regras vigentes.
CONJURAR O
PÊNALTI
Quase ao
terminar o primeiro tempo, um inglês foi derrubado de maneira tão bárbara
dentro da grande área, que o “patriota” de camisa preta não teve jeito senão
marcar a penalidade máxima. Mas, quando
o center-forward, gigantão louro, 1,90m, encaminhou-se para a bola, todo o time
inglês fazia sinais para que ele chutasse pra fora.
Tradução: os
ingleses achavam uma indignidade marcar gol de pênalti. Embora o 1 X 1 poderia, inclusive, influir de
maneira decisiva no resultado final.
No seio da
torcida presente ao campo da ARA, aquilo era o suprassumo do fino, do
cavalheirismo personificado, um gesto altamente civilizado!
O TROCO
Quando faltavam
dez minutos pra terminar o jogo, com o placar ainda estabelecendo 1 X 0, foi a
vez do América – agora me lembro que era o América que enfrentava os ingleses
–por intermédio de Neném, paulista que aqui aportou e se tornou o maior craque
que já pisara em gramados papa-jerimuns, foi o encarregado da cobrança. A penalidade não fora patriotada. Realmente, o galego da camisa 3 desviara a
bola com a mão.
Para os
natalenses, os 2 X 0 era a sopa no mel.
Faltando tão pouco tempo para o encerramento, era a vitória
consolidada. Mas estavam impregnados
pelos salamaleques dos visitantes. Urgia
retribuir, mostrando educação. Afinal,
não eram tão bárbaros!
- Pra fora! Pra fora! – gritavam em coro.
Neném, como um
príncipe distribuindo benesses, chutou com elegância a pelota para léguas
distantes da área, lá pra perto da linha de corner, como a dizer:
- Vejam, seus
galegos: nós também somos romanticamente civilizados.
LEMBRANÇA
PRIMEIRA
Essa foi a
lembrança primeira que tive de espetáculo futebolístico. Não sei se estes lances realmente existiram
ou se foram frutos de minha imaginação de menino. Nunca tirei a limpo esta história dos
românticos pênaltis, para não me decepcionar.
Mas, aqui entre
nós, nunca mais vi lances como estes!
A SÚMULA DO JOGO
América 4 – 2 H. M. S. Dauntless
Data: domingo, 30/8
Competição: amistoso
Estádio: Juvenal Lamartine
Árbitro: Aníbal Azevedo
Gols: Cabo João, Hemetério, Blake (contra), Glicério
e Giblin (2)
América: Milton, Raimundo, Everardo, Teixeira, Neném,
Praça, Baltasar, Cabo João, Hemetério, Glicério e Pinheirão. Treinador:
Everardo Barros
Dauntless: Black, Kelloway,
Barrigton, Pay, Castland, Barry, Hilley, Giblin, Robson, Lunchers e Hitleir
NOTA DO REDATOR: crônica do livro "Gol de Placa" (Editora
Clima - 2002), publicada em rede social pelo bisneto, o produtor cultural Eduardo Alexandre de Amorim Garcia (Dunga), cedida gentilmente para o blog. O
autor, José Alexandre Garcia, foi editor esportivo do “Diário de Natal” nos
anos 50/60 e presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Rio Grande do
Norte.
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