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segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Pesquisa aponta farsa no "deca-campeonato" do ABC

Arthur Pierre pesquisa a fundo

Com fatos e números Arthur Pierre apresenta o futebol da década de 30*

Para realizar o levantamento detalhado Arthur Pierre ‘mergulhou’ na Biblioteca Nacional/Foto: Divulgação

A década de 1931 a 1940 representou um dos períodos mais fascinantes e decisivos para a consolidação do futebol no Rio Grande do Norte.

Uma pesquisa meticulosa realizada por Arthur Pierre dos Santos Medeiros revela um cenário esportivo vibrante, onde a paixão pelo esporte bretão superava a ainda incipiente estrutura, reunindo multidões no estádio Juvenal Lamartine.

Este foi o palco onde duas forças antagônicas do esporte local travaram batalhas épicas e forjaram a mais duradoura rivalidade do estado: ABC e América.

A década começou com a hegemonia rubra. O América, bicampeão em 1930, reafirmou seu domínio em 1931 com uma campanha sólida, coroada por uma vitória por 4 a 3 sobre o ABC na partida decisiva.

Jornais como “A República” noticiavam a euforia alvirrubra, que via em jogadores como Raymundo, Nenêm e Baltazar os heróis de uma era dourada.

No entanto, o vento começou a mudar a partir de 1932. Foi nesse ano que o ABC, time alvinegro, conquistou seu primeiro título oficial, iniciando uma sequência avassaladora que marcaria a década.

A equipe do ABC não apenas vencia; impunha sua força, como na goleada de 6 a 1 sobre o América na abertura do Estadual de 1936, um verdadeiro espetáculo de força.

A rivalidade, entretanto, era o grande combustível. Trazendo o histórico de uma década, o “Clássico-Rei” era mais que um jogo; era um evento social que parava Natal.

Partidas como a de 1931, com o América vencendo por 5 a 4, ou a decisão do Estadual de 1933, que precisou de três jogos extras para ser decidida, com o ABC levando a melhor por 6 a 4, entraram para o folclore. Em 1935, o ABC aplicou uma sonora goleada de 5 a 1, demonstrando o abismo que se formava.

O atacante Xixico se tornou um pesadelo para a defesa americana, anotando gols em praticamente todos os confrontos e simbolizando a era de ouro abcedista.

O América respondia com sua própria raça, conseguindo vitórias importantes, como o 3 a 1 em 1937, quebrando uma invencibilidade alvinegra, mas a regularidade estava com o rival.

Os campeonatos estaduais da época eram repletos de particularidades curiosas. A década foi marcada por paralisações constantes.

O certame de 1936, por exemplo, nunca foi oficialmente concluído, interrompido por uma série de amistosos interestaduais. Situação semelhante ocorreu em 1938.

A pesquisa de Arthur Pierre ressalta que os títulos atribuídos ao ABC nesses anos são baseados na tradição oral e na condição de “campeão moral”, pois não houve homologação oficial pela ARA (Associação Riograndense de Athletismo).

O futebol não vivia em uma bolha; visitas de clubes pernambucanos, como Santa Cruz, Sport e Náutico, ou paraibanos, como Botafogo e Auto Esporte, desviavam a atenção e paralisavam o calendário local, mostrando uma intensa troca interestadual.

Um capítulo à parte e de extrema curiosidade foram as partidas internacionais. Em 1931, o América enfrentou e venceu por 4 a 2 a tripulação do cruzador britânico H.M.S. Dauntless. O jogo, amplamente noticiado, foi cercado de pompa, com a Taça Eric Gordon em disputa.

Relatos da época, citados por Arthur Pierre, descrevem um “fair-play” quase cavalheiresco, com os ingleses supostamente recusando-se a converter um pênalti por considerar antiético marcar gol dessa forma.

Anos depois, em 1936, o ABC também mediu forças com um navio da Marinha Britânica, o H.M.S. Scarborough, embora o resultado desta partida tenha se perdido no tempo. Esses amistosos eram mais que jogos; eram eventos de afirmação local perante o mundo.

O auge do reconhecimento do futebol potiguar em nível nacional veio em 1934 com os “Fantasmas do Norte”. A seleção estadual, formada por craques do ABC e América, como Xixico, Mário Crise, Cabo João e Hemetério, realizou uma campanha histórica no Campeonato Brasileiro de Seleções.

Eles conquistaram o título de Campeã do Nordeste após vencer Paraíba, a poderosa Pernambuco e o Ceará, só sendo eliminados pela Bahia na semifinal. Este feito, amplamente documentado na pesquisa, colocou o Rio Grande do Norte no mapa do futebol nacional e mostrou que, quando unidos, os rivais formavam uma força temível.

Ao final da década de 1930, o ABC havia estabelecido uma hegemonia incontestável. Entre os campeonatos oficiais e os “morais”, o alvinegro acumulou a incrível marca de oito títulos estaduais em dez anos (1932, 1933, 1934, 1935, 1937, 1939 e 1940, além dos não conclusos campeonatos de 1936 e 1938, este último não relacionado na galeria do clube).

O América, que abriu a década no topo, acabou na sombra do rival, conquistando apenas o bicampeonato em 1931. O pesquisador Arthur Pierre desvenda este período não apenas com números e placares, mas com as histórias, os personagens e as rivalidades que transformaram o futebol no Rio Grande do Norte de uma mera diversão em uma paixão enraizada, cujos ecos do Clássico-Rei nos anos 30 ainda ressoam nos estádios potiguares como se fosse hoje.

 

*TRIBUNA DO NORTE (sábado/domingo – 29/30 de agosto de 2025)